Monday, May 12, 2008

O dilúvio

Dedico esta pequena ficção à Sara, que ainda só tem um mês mas a quem um dia espero poder ler com ela ao meu colo. Se tudo correr como os pais e eu sonhamos, ela poderá crescer a acreditar que o amor é a coisa mais importante da vida.

É como lhe digo, minha senhora”, desanimava o canalizador, coçando a cabeça de estupefacção perante tal coisa, consternado ante aquela humilhação da Física que lhe derrubava o orgulho profissional. “Isto é mesmo defeito de origem, não tem conserto. Agora só um novo. Tenho muita pena, minha senhora”. “É menina”, indignava-se ela surdamente, sem saber o que fazer aquele dilúvio embaraçoso, que em nenhum lugar ou circunstância a poupava. As pessoas olhavam-na desconfiadas, a princípio, e repugnadas, depois. Como ela desejava poder estancar aquilo. O canalizador lembrou-se então: “Só se a senhora quiser experimentar pôr aí uma pedra grande, pesada, assim como se faz com os autoclismos. Talvez assim consiga que isso não saia assim dessa maneira, não sei...”.

Ela experimentou. Arranjou uma pedra enorme, polida e depositou-a com cuidado no fundo do coração. Aos poucos, o fluxo morno e viscoso, que dele saía desprositadamente há anos, abrandou, até parar completamente. Deixou de salpicar as pessoas de amor inoportuno, de as perturbar com aquela generosidade absurda. Conseguira: amordaçara o coração. Podia viver agora como toda a gente.

Um dia, porém, na rua, sentiu um sobressalto. Com uma convulsão medonha, acompanhada de um jorro irreprimível, viu o calhau sair-lhe cuspido do peito e ir bater num homem que passava na rua. O homem, muito atordoado, levou a mão à cabeça e balbuciou “mas então?...”. Ruborizada, ela afobava-se em justificações: “o senhor desculpe, mas é que eu tinha uma pedra no coração, para ver se ele secava, só que parece que hoje ele não aguentou mais e precisou de deitar tudo cá para fora outra vez...não há mesmo remédio para isto...”. “Uma pedra no coração?”, incredulizava-se ele. “Mas isso devia doer-lhe muito”. “Um bocadinho”, reconheceu ela. Ele endireitou-se, esqueceu-se de afagar a cabeça dorida, olhou-a atentamente e respondeu: “ninguém devia ser obrigado a andar com pedras no coração, menina.” Viu-a alagada como uma parturiente e calada de frustração. Colocou-lhe o casaco à volta, tomou-lhe o braço e começou a andar: “venha, que ainda se constipa”.

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