Tuesday, May 27, 2008

"Dava dez anos de vida para te ver voltar."
(José Cid)

My Blueberry Nights


Que filme belíssimo: toda a estética costumeira de Wong Kar Wai (néons, veículos, sol ofegante a raiar a noite negra), um argumento enfeitiçante, belezas judias (La Weisz, La Portman), uma surpreendente Norah Jones (que representa muito melhor do que canta), um Jude Law a fazer pela primeira vez de ser humano decente, os personagens mais solitários e perdidos do mundo. E tal como na caixa de Pandora, afinal havia esperança. E a ingenuidade ainda é um trunfo.

Monday, May 26, 2008

Entre Sila e Caribdis

É um desafio revisitar o passado quando o presente titubeia e o futuro se demora. Quando o contraponto é débil, o passado pode temivelmente agigantar-se onde só deveria encolher-se e regurgitar em vez de se dissolver.
No próximo fim de semana irei saber como é, sem rede, nem muletas, nem azedume.

Fasquia

As pessoas que já foram muito felizes têm a mesma limitação das pessoas que já foram muito ricas: depois disso tudo lhes parece pouco, tornam-se ingratas para com as pequenas fortunas e suspiram por enormes riquezas que em nenhum lado se vislumbra que possam reaparecer.

Win-win

Havia um tio remoto na família que costumava dizer que, quando alguém nos oferece alguma coisa, devemos sempre aceitar - porque quem nos oferece de boa mente fica contente por isso, e quem oferece de má mente fica chateado e é bem feito.

Tenho estado cá a pensar que a mesma filosofia se aplica airosamente ao dar: quando queremos oferecer alguma coisa, devemos sempre fazê-lo, porque quem quer receber fica contente e quem não quer fica chateado e, lá está, também é bem feito.

Friday, May 16, 2008

Boas pequenas surpresas

Há dias furei um pneu e foi um aluno que mo trocou, numa faculdade onde todos pareciam engravatados inúteis para as coisas práticas da vida (dos quais eu era a mais inepta, salto fino e saia travada a fazerem-me sentir ridícula ante aquele pedaço de borracha que tinha acabado de desistir da vida). Lembrei-me da história do "sábio" que atazana sem cessar um pobre e simpático coitado, colocando-lhe perguntas difíceis e chamando-lhe ignorante quando constata a ausência de respostas. Iam caminhando à beira-rio, o sábio cai ao rio e o amável insultado salva o sábio. E fala enfim: "O senhor sábio sabe muitas coisas; mas não sabe nadar e eu sei". Também eu posso saber muita coisa de marketing mas não sei mudar um pneu sozinha; já o meu aluno E. não só sabe mudar um pneu como, se tudo correr bem, saberá bastante de marketing dentro de alguns anos.

Ainda na sequência da aventura do pneu, há aqueles sítios onde fecham a porta um minuto antes do horário de encerramento e há aqueles onde se atende clientes desesperados já pela hora de jantar adentro sem se olhar ao relógio. Em Odivelas há um sítio assim: numa cadeia americana chamada Midas, dois portugueses muito amáveis desenrascaram uma tipa às avessas com a sorte, tornando-lhe o final de dia menos inglório. Abençoados sejam.

Sempre achei que um dos meus vizinhos era profundamente antipático porque não respondia aos "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" que lhe dirigiam. Neste momento esse vizinho coadjuva-me na função de administradora de condomínio. Tem sido simpatiquíssimo. E apercebo-me agora de que ele é bastante surdo.

Os gajos que não têm ar de pessoas normais

Já tardava a apreciação do concerto FABULOSO do The National no passado domingo na Aula Magna, mas ele resume-se a pouco depois de esgotados os adjectivos para aquela prestação FENOMENAL: neles, a melancolia é mais elegante, mais negra, mais retorcida, mais pungente, mais cruel, mais devocional do que em qualquer outra banda. E o senhor-da-bela-voz-grave grita que nem um desalmado quando menos se espera, a provar que há ali uma alma sem compostura, sem previsibilidade, sem freios. Felizmente parecem uma banda bem estranha - porque os grandes músicos/grandes poetas nunca devem ser pessoas com ar normal. Que seria de nós sem eles?

Wednesday, May 14, 2008

Reset

Os olhos piscam. O mundo esvai-se. O ser adoça-se, enquanto se some num vácuo desconhecido. As últimas memórias esvoaçam, confusas, rodopiando num derradeiro ciclone. Será que todas as tuas horas insones poderão ser agora a troca das noites em branco de outrém por ti, durante os anos em que viveste sem o adivinhar? Poderão as discussões que travaste ter contrapesado os sorrisos que te distribuíram? Terá havido, para cada ferro de desespero, uma faúlha de esperança a redimir-te da inutilidade? Não vais saber. A tua consciência apaga-se e perde-se dentro das tuas pupilas.

Acordas. Tens faróis à frente, virados para ti. Sentes medo. Estás em contramão. Fechas outra vez os olhos, agora com força.

Mas o destino esquece-se de ti. Vives. Está tudo bem.
A vida recomeça.

Monday, May 12, 2008

O dilúvio

Dedico esta pequena ficção à Sara, que ainda só tem um mês mas a quem um dia espero poder ler com ela ao meu colo. Se tudo correr como os pais e eu sonhamos, ela poderá crescer a acreditar que o amor é a coisa mais importante da vida.

É como lhe digo, minha senhora”, desanimava o canalizador, coçando a cabeça de estupefacção perante tal coisa, consternado ante aquela humilhação da Física que lhe derrubava o orgulho profissional. “Isto é mesmo defeito de origem, não tem conserto. Agora só um novo. Tenho muita pena, minha senhora”. “É menina”, indignava-se ela surdamente, sem saber o que fazer aquele dilúvio embaraçoso, que em nenhum lugar ou circunstância a poupava. As pessoas olhavam-na desconfiadas, a princípio, e repugnadas, depois. Como ela desejava poder estancar aquilo. O canalizador lembrou-se então: “Só se a senhora quiser experimentar pôr aí uma pedra grande, pesada, assim como se faz com os autoclismos. Talvez assim consiga que isso não saia assim dessa maneira, não sei...”.

Ela experimentou. Arranjou uma pedra enorme, polida e depositou-a com cuidado no fundo do coração. Aos poucos, o fluxo morno e viscoso, que dele saía desprositadamente há anos, abrandou, até parar completamente. Deixou de salpicar as pessoas de amor inoportuno, de as perturbar com aquela generosidade absurda. Conseguira: amordaçara o coração. Podia viver agora como toda a gente.

Um dia, porém, na rua, sentiu um sobressalto. Com uma convulsão medonha, acompanhada de um jorro irreprimível, viu o calhau sair-lhe cuspido do peito e ir bater num homem que passava na rua. O homem, muito atordoado, levou a mão à cabeça e balbuciou “mas então?...”. Ruborizada, ela afobava-se em justificações: “o senhor desculpe, mas é que eu tinha uma pedra no coração, para ver se ele secava, só que parece que hoje ele não aguentou mais e precisou de deitar tudo cá para fora outra vez...não há mesmo remédio para isto...”. “Uma pedra no coração?”, incredulizava-se ele. “Mas isso devia doer-lhe muito”. “Um bocadinho”, reconheceu ela. Ele endireitou-se, esqueceu-se de afagar a cabeça dorida, olhou-a atentamente e respondeu: “ninguém devia ser obrigado a andar com pedras no coração, menina.” Viu-a alagada como uma parturiente e calada de frustração. Colocou-lhe o casaco à volta, tomou-lhe o braço e começou a andar: “venha, que ainda se constipa”.

“When all this nonsense is over”

O Paciente Inglês é o filme da minha vida. Bastar-lhe-ia, para isso, logo a primeira cena, em que um homem queimado me catapulta de imediato, com uma dor realmente física, para a recordação de ver o meu pai em semelhante estado no Hospital de Coimbra. Além disso, o filme tece-se em torno da paixão e da perda, dois temas muito meus e tratados à maneira dos meus. Há inúmeros momentos profundamente significantes de que nele me recordo. Um dos possíveis é aquele em que, preparando-se para se separarem, Ralph Fiennes diz a Kristin Scott-Thomas: “ainda não sinto a tua falta”. Com os olhos doridos e altivos que só um amor imensamente trágico consegue matizar daquela maneira, ela responde somente: “sentirás…sentirás”.

Livros do momento

Cada um a seu modo, “A Ilha dos Pinguins” de Anatole France e “Luz em Agosto” de William Faulkner (curiosamente, ambos nobelizados) são de uma crítica social mordaz. O primeiro descreve as consequências de um embaraço burocrático de Deus, que se viu obrigado pela cegueira de um santo homem seu acólito a conceder aos pinguins (baptizados como se homens fossem) estatuto moral de humanos. A história não lhe correu melhor a eles do que à humanidade. O livro é impiedoso, mas permite-nos o distanciamento que deixa soltar uma gargalhada de quando em vez. No segundo caso, temos o estigma do racismo no centro de um rol de complexas crueldades psíquicas e sociais. O ambiente, de uma América profunda dissecada sem delicadezas, é claustrofóbico e incomodativo. Duas obras-primas.

Friday, May 09, 2008

The mood of love

Ele era louco por ela. Ela nem tanto. Ele escrevia-lhe cartas, suportava-lhe as desculpas para não se encontrarem, gravava-lhe música, enviava-lhe presentes, dançava slows à frente dos amigos quando ela acedia a ir dançar com ele, esperava-a à saída do edifício que o mantinha longe dela durante o dia, só na esperança dos parcos minutos em que se viam e trocavam palavras e beijos rápidos. Ele era bonito, popular e ela sentia-se lisonjeada. Quando ele lhe pediu maior entrega e ela não encontrou, no fundo do coração, húmus para poder fazer medrar aquele afecto, esquivou-se numa cobardia: "Talvez se dessemos um tempo...". Numa expressão que nunca antes ela lhe tinha visto, ele respondeu com dignidade e secura: "Eu não sou a prazo". A partir daí, ela foi reparando numa curiosa lei da vida: a pessoa que mais se entrega e que parece a mais dependente é quase sempre a que termina a relação. Daí que, ao contrário do que diz o ressabiado senso comum, amar não seja tão perigoso como se diz.

Com ternura e com afecto

Vi ao acaso fotografias do México e lembrei-me da canção do Chico: "Na fotografia, estamos felizes (...) é desconcertante rever o grande amor (...) mas quando me lembro, são anos dourados". De azul sobre ouro (no coração), aqui estava eu, com ar que quem era feliz para o resto da vida.

Wednesday, May 07, 2008

História de uma tarde de Outono em 2004

Andei a arrumar emails e descobri uma coisa que escrevi há uns anos.

"Diz-se muita coisa sobre as pessoas.
Por exemplo.
Eu agora trabalho numa empresa onde faço um trabalho à semelhança do de Pilatos, uma vez que a seguir lavo dali as minhas mãos. Dedico-me a estudar as pessoas, em particular os jovens, e os senhores das decisões que façam o que quiserem com isso. Não serei eu quem impinja açúcar, aromas e dióxido de carbono à presa escolhida - eu só tento saber aquilo de que eles gostam, e deixo a outros a tarefa de os obrigar a gostar seja do que for.

Do que tenho visto, há inúmeros estudos a desacreditar qualquer visão positiva que se possa ter dos jovens hoje em dia e das pessoas em geral. Que as pessoas não querem ser felizes, só mostrar que são felizes. Que não querem ser inteligentes em termos de conhecimento mas apenas de postura. Que não querem relacionar-se entre si, só querem ter "contactos". Dito assim, parece um mundo muito desinteressante para se viver.

Pois eu acho que há anjos em todo o lado.

Faz alguns dias, num sábado à tarde do esplêndido mês de Outubro em Lisboa, pela zona do Chiado, que por esta altura cheira irresistivelmente a castanhas e às primeiras iluminações de Natal, havia uma enorme multidão a borboletejar pelas ruas.

O largo do Carmo ainda tinha esplanadas de cor solarenga, e eu nunca tinha visitado o convento. A convite do meu amigo Luís, acabei por descobrir que no Museu Arquelógico havia múmias incas...e eu que tinha ido tão longe.

Dali fomos para o Chá do Carmo, que é um sítio encantador onde nos conseguimos sentir, no que isso tem de bom, uns velhinhos que por ali tivessem vivido a vida toda e sempre e regularmente, em cada visita, sejam tão acarinhados que se sintam quase em casa. No Outono, é um sítio indispensável, tanto como as folhas caídas nos passeios.

O empregado de mesa é um mulato apressado, muito cortês, que nos seus bons dias sorri delicadamente e nos faz sentir uns velhotes prezados. Naquele dia, o seu sorriso estava pronto, e trouxe-nos um chá abaunilhado, denso e rico, da China, uns scones fumegantes e uma suculenta torta de marmelada. Só por isso já se poderia ter chamado anjo à cozinheira.

A seguir, a senhora que partiu uma fatia de torta para o meu namorado, que não pudera ir lanchar, avantajou o pedaço enquanto me olhava cumplicemente, e pelo brilho dos seus olhos senti-me grata.

Já saíamos, confortados e aquecidos, quando um rapaz, daqueles com aspecto artístico (que é o nome que se dá a jovens de ar irreverente, cabelo cortado em pontas soltas, vestuário à filme francês, e um desleixo clean muito em moda nos grupos intelectuais que por vezes pontilham certos sítios da capital - e o Chá do Carmo é um deles), veio ter connosco a correr estendendo-me um saco que eu tinha deixado esquecido debaixo da mesa. Sorria-me, e enquanto lhe agradeci e recolhi o embrulho, pensei para comigo com ironia que devia aquele ser um dos jovens de que se diz que não têm maneiras nem querem ser felizes nem relacionar-se com os outros. Os outros...os outros não sabem nada.

Caía a tarde e descemos, Rua do Alecrim abaixo, com um azul de pré-luar do Tejo a esvaír-se, sob os guindastes velhos da Lisnave, até ao Cais do Sodré, e dentro das ruelas mas sórdidas era onde eu tinha o carro, porque parecera naquela tarde que ninguém ali quisera estacionar.

O Luís despedia-se à sua maneira, que é como quem diz com conversas intermináveis e promessas de telefonar que nunca cumpre; parada numa esquina, uma mulher fitava-me, sem maldade nem inveja, somente com o pasmo calado de nós por ali estarmos sem ar de fauna daquele género e como se tacitamente me perguntasse qual era a diferença entre mim e ela.

Foram estas parcas pessoas que povoaram aquela minha tarde, mas é disto e de outras miudezas que se faz o meu amor pela cidade - conquanto haja sol, liberdade e gente a palpitar pelas ruas.

Há imensos anjos espalhados por aí e pelos nossos dias. Cintilam, ao acaso, no laranja do crepúsculo, e sorriem-nos, amparam-nos, falam-nos ou simplesmente olham-nos do modo que precisamos naquele momento.

E há mais anjos no Outono, numa tarde em Lisboa, do que se possa julgar. Acreditem."

Mundo prioritário


Quando a melancolia se espalha nas veias como um veneno familiar e insidioso, dou largas ao sonho e vou pelo mundo fora. Como sou Capricórnio e muito planeadinha, dedico-me a imaginar as próximas pegadas. Espero pelo menos chegar à Àsia Menor antes da devastação.


Fatal

Falhei mais um Indie Lisboa, mas este ano não perco o FATAL. O programa é sumarento: http://www.ul.pt/pls/portal/docs/1/171570.PDF

E para o ano, ah, para o ano é que vai ser...as minhas semanas serão os vossos fins de semana e irei a tudo, tudo, tudo!

Tuesday, May 06, 2008

A seu tempo

Iam sempre no mesmo autocarro, da escola para casa. Começaram a falar por casualidade e passaram a sentar-se juntos. Falavam muito, tanto quanto se pode falar muito em 20 minutos de solavancos e chiares de carripana velha. Ele era sereno, correcto, tinha a voz mansa e a palavra cheia de siso. Ela gostava dele. Ele sorria. Ao fim de alguns meses, ele decidiu-se enfim a informá-la, sempre com delicadeza, de que o sentimento que percebia nela não era correspondido. “A vida não é como nós queremos”, sentenciou ele salomonicamente. Ela ficou varada, quase mais por ele ter notado do que por ele não a querer. Continuaram a falar no autocarro.
Uns tempos mais tarde, calhou ele pedir-lhe emprestado um dicionário de francês. Ficou com ele durante meses. Já sarada e a precisar de fazer uma tradução, ela telefonou-lhe a pedir o dicionário de volta. Ele apressou-se em desculpas e prometeu devolver-lhe o dicionário. “Não quero que fiques chateada comigo”, disse com a sua voz sempre melíflua. E a ela, então, não lhe ocorreu melhor para responder do que um sincero “pois é; mas a vida não é como nós queremos”.

Monday, May 05, 2008

Sem modernices

Não há palavras escritas que valham a voz ou o abraço.