Wednesday, May 07, 2008

História de uma tarde de Outono em 2004

Andei a arrumar emails e descobri uma coisa que escrevi há uns anos.

"Diz-se muita coisa sobre as pessoas.
Por exemplo.
Eu agora trabalho numa empresa onde faço um trabalho à semelhança do de Pilatos, uma vez que a seguir lavo dali as minhas mãos. Dedico-me a estudar as pessoas, em particular os jovens, e os senhores das decisões que façam o que quiserem com isso. Não serei eu quem impinja açúcar, aromas e dióxido de carbono à presa escolhida - eu só tento saber aquilo de que eles gostam, e deixo a outros a tarefa de os obrigar a gostar seja do que for.

Do que tenho visto, há inúmeros estudos a desacreditar qualquer visão positiva que se possa ter dos jovens hoje em dia e das pessoas em geral. Que as pessoas não querem ser felizes, só mostrar que são felizes. Que não querem ser inteligentes em termos de conhecimento mas apenas de postura. Que não querem relacionar-se entre si, só querem ter "contactos". Dito assim, parece um mundo muito desinteressante para se viver.

Pois eu acho que há anjos em todo o lado.

Faz alguns dias, num sábado à tarde do esplêndido mês de Outubro em Lisboa, pela zona do Chiado, que por esta altura cheira irresistivelmente a castanhas e às primeiras iluminações de Natal, havia uma enorme multidão a borboletejar pelas ruas.

O largo do Carmo ainda tinha esplanadas de cor solarenga, e eu nunca tinha visitado o convento. A convite do meu amigo Luís, acabei por descobrir que no Museu Arquelógico havia múmias incas...e eu que tinha ido tão longe.

Dali fomos para o Chá do Carmo, que é um sítio encantador onde nos conseguimos sentir, no que isso tem de bom, uns velhinhos que por ali tivessem vivido a vida toda e sempre e regularmente, em cada visita, sejam tão acarinhados que se sintam quase em casa. No Outono, é um sítio indispensável, tanto como as folhas caídas nos passeios.

O empregado de mesa é um mulato apressado, muito cortês, que nos seus bons dias sorri delicadamente e nos faz sentir uns velhotes prezados. Naquele dia, o seu sorriso estava pronto, e trouxe-nos um chá abaunilhado, denso e rico, da China, uns scones fumegantes e uma suculenta torta de marmelada. Só por isso já se poderia ter chamado anjo à cozinheira.

A seguir, a senhora que partiu uma fatia de torta para o meu namorado, que não pudera ir lanchar, avantajou o pedaço enquanto me olhava cumplicemente, e pelo brilho dos seus olhos senti-me grata.

Já saíamos, confortados e aquecidos, quando um rapaz, daqueles com aspecto artístico (que é o nome que se dá a jovens de ar irreverente, cabelo cortado em pontas soltas, vestuário à filme francês, e um desleixo clean muito em moda nos grupos intelectuais que por vezes pontilham certos sítios da capital - e o Chá do Carmo é um deles), veio ter connosco a correr estendendo-me um saco que eu tinha deixado esquecido debaixo da mesa. Sorria-me, e enquanto lhe agradeci e recolhi o embrulho, pensei para comigo com ironia que devia aquele ser um dos jovens de que se diz que não têm maneiras nem querem ser felizes nem relacionar-se com os outros. Os outros...os outros não sabem nada.

Caía a tarde e descemos, Rua do Alecrim abaixo, com um azul de pré-luar do Tejo a esvaír-se, sob os guindastes velhos da Lisnave, até ao Cais do Sodré, e dentro das ruelas mas sórdidas era onde eu tinha o carro, porque parecera naquela tarde que ninguém ali quisera estacionar.

O Luís despedia-se à sua maneira, que é como quem diz com conversas intermináveis e promessas de telefonar que nunca cumpre; parada numa esquina, uma mulher fitava-me, sem maldade nem inveja, somente com o pasmo calado de nós por ali estarmos sem ar de fauna daquele género e como se tacitamente me perguntasse qual era a diferença entre mim e ela.

Foram estas parcas pessoas que povoaram aquela minha tarde, mas é disto e de outras miudezas que se faz o meu amor pela cidade - conquanto haja sol, liberdade e gente a palpitar pelas ruas.

Há imensos anjos espalhados por aí e pelos nossos dias. Cintilam, ao acaso, no laranja do crepúsculo, e sorriem-nos, amparam-nos, falam-nos ou simplesmente olham-nos do modo que precisamos naquele momento.

E há mais anjos no Outono, numa tarde em Lisboa, do que se possa julgar. Acreditem."

1 comment:

Anonymous said...

Pareces ser bem interessante.